As lembranças da catástrofe de 2008: um super-herói que venceu na superação

No imaginário da gente, nosso pai é sempre um super-herói. Não aquele super herói que usa super poderes, capa, espada ou roupa estranha para manter-se no anonimato. Não aquele herói de séries de TV ou revistas em quadrinho. O nosso super-herói é aquele se esforça todo dia para dar do seu melhor para sua família. Meu pai faleceu em abril deste ano – 10 anos após mostrar o quanto era meu herói predileto.

Um morro derrete 

Primeiro, vamos aos relatos daquela madrugada de 24 de novembro de 2008, um domingo para segunda-feira. De repente, em meio a escuridão, um grande estouro ecoa pelo vale da rua Augusto Otte, levando ao desespero seus moradores, já apreensivos com a chuva que não dava trégua.

Era parte do morro, na parte baixa da rua, escorregando e arrastando todas os eucaliptos que tinha pela frente até bloquear a estrada que dá acesso para rua Tiradentes. O drama só piorava, pois o outro lado da rua já estava bloqueado e a rua Porto Alegre, no topo do morro, também teve um grande escorregamento.

O drama familiar 

Na minha casa, o drama era grande e só aumentava. Minha mãe hospitalizada há mais de duas semanas, eu ilhado em Pomerode, onde prestava serviços de assessoria de comunicação para os Jogos Abertos. Meu pai, sozinho, abrigou no dia anterior minha namorada, suas duas filhas pequenas e a sogra.

Na madrugada daquele sábado para domingo o morro atrás da minha casa foi primeiro a deslizar, rompendo o muro lateral.

A ordem era evacuar a rua 

Voltando ao grande escorregamento do dia 24, a ordem da defesa civil era uma só: evacuar a rua. A comunicação por celular na época não contava com as facilidades de hoje. SMS era a tecnologia da vez. E foi assim que consegui, mesmo a distância (em Pomerode), um lugar para abrigar a família provisoriamente na residência do morador Rui Souza, na Hermann Hering.

Minha namorada, as crianças e a sogra saíram de casa por volta das 5 da manhã. Sem acesso para rua Tiradentes e sem conhecer a rua ou uma trilha próxima de casa que levava até a rua Frei Ernesto Emmendorfer, subiram a Augusto Otte e passaram por cima, em outro caminho alternativo até sair na Frei Ernesto e depois Tiradentes.

Um herói teimoso 

Meu pai, Lírio Vitória, italiano turrão, então com 68 anos, ignorou os apelos da defesa civil. Permaneceu em casa, com o argumento que não iria deixar a casa à mercê de ladrões. Sim, já havia relatos nesse sentido em vários pontos da cidade.

Incredulidade

Na manhã de terça-feira, finalmente, obtive a informação que as águas baixaram e o acesso entre Pomerode e Blumenau, estava liberado. Mas era preciso cuidado redobrado em função de vários deslizamentos na pista. Foram 15 dias na terra mais alemã do Brasil. Sai daqui com chuva torrencial e ameaça de enchente. Tão somente isso.

Retornei com a informação da barreira que fechou a rua onde moro. Naquele momento não acreditei. Deixei o carro carregado, com malas, computador, monitor e impressora. Na subida da rua Tiradentes.

Guiado pela Muriele Cristina Moser, minha namorada, caminhei até a Frei Ernesto e cheguei na minha rua pela trilha feita pelo bambuzal que protege aquela encosta e fui pulando o muro do vizinho até chegar em casa e ver o tamanho do estrago lá no fundo e na rua. Fiquei sem palavras. 

Muito trabalho 

Passado todo susto daquela madrugada, era hora de contabilizar os estragos. A situação era preocupante. Os dois lados da Augusto Otte estavam fechados. Sobre a terra que caiu na rua, na parte que dá acesso para Tiradentes, moradores improvisaram uma passagem com tábuas e troncos de eucaliptos para dar passagem a pé. Carros ficaram estacionados na entrada da rua ou na subida da Tiradentes.

Em casa, o volume de barro que caiu do nosso morro também foi grande. E sua retirada apenas com pá, enxada e carrinho de mão. Consegui a doação de 300 metros de lona. Uma parte era para o deslizamento da rua, mas como o proprietário daquela área de preservação sequer deu as caras ou mandou algum funcionário para estender a lona e ainda veio dizer para que fizemos isso, optei por repassar uma parte ao vizinho do lado que também foi atingido.

Calos na mão e muita dor 

Sozinho, meu pai seguia tirando o barro com carrinho de mão. Mas após vários dias, chegou ao seu limite. Os calos nas mãos e as dores evidenciavam que era hora de pedir ajudar. Após muito insistir, ele aceitou meu pedido. Recorri a um amigo de uma empresa de concreto para que pudessem liberar funcionários para executar a tarefa. Ela foi cumprida em tempo recorde. Em apenas um dia, o terreno foi limpo.

Meu pai, aliviado, passou a concentrar esforço em arrumar a casa (estava suja e com tudo fora do lugar) e prepará-la para o retorno da mãe, ainda hospitalizada.

Aos poucos, a vida aqui na rua voltava ao normal. A energia e a telefonia restabelecida, a rua aberta, com mais de 100 caminhões de barro retirados. Faltava tão somente o sinal de TV a cabo. E esse demorou pacas.

Com a alta da mãe, a vida aqui em casa também voltava a ser em família.

As lições 

Desse episódio, meu herói sem super poderes nunca se recuperou totalmente. A cada chuva mais forte, o temor de novos deslizamentos. E muitas noites de insônia. O abatimento também foi grande, junto com os desgastes físicos nunca superados. Mesmo assim, a encosta aqui em casa recebeu plantação de bambuzais e outras plantas para sua proteção. As águas em pontos críticos foram desviadas.

Uma história que já havia visto em outras décadas, envolvendo outros vizinhos que, inclusive, perderam suas casas. Aqui, os deslizamentos são cíclicos. Uma história que gosto de deixar sempre viva, pois é uma experiência que precisa ser compartilhada aos novos moradores e para as futuras gerações. Somente assim, podemos evitar que erros do passado sejam repetidos.

Cicatrizes do deslizamento 

Ainda temos cicatrizes desses deslizamentos. Basta observar do alto. A vegetação caída na rua ainda não se recompôs, passados 10 anos.

Orgulho do meu pai 

Não tenho palavras para descrever o que vivenciei aqui com meu pai e a família em 2008. O estrago foi grande. Mas saber que tu tens um super-herói em casa, protegendo todos e seu lar, nos enche de orgulho. É seu Lírio Vitória, seu italiano teimoso, saiba que teu trabalho não foi em vão. Fosse exemplo, vitrine, para mim e muitos outros. Pena tu não poder estar aqui agora, uma década depois, me auxiliando para recontar parte dessa história. Com saudades, finalizo esse relato para posteridade.

Giovani Vitória | Jornalista | Rotariano | 50 anos | Nascido e criado no Bom Retiro | Editor do Viver Bom Retiro

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